Já encarei o futuro com um tipo ameno de pessimismo. Um pessimismo preventivo, digamos assim. Não era um pessimismo completo porque, no fundo, eu não esperava sempre pelo pior. Aliás, se acontecesse sempre o pior, eu ficaria muito decepcionado. Mas, a todo o instante, eu exercitava minha capacidade de resistir à frustração, me convencendo de que nada iria funcionar.
O que ganhava com isso? Bem, para começar, se tudo de fato desse errado, eu já estaria psicologicamente preparado para o fracasso. E se as coisas dessem apenas meio certo, eu já ficava feliz.
Mas, de uns tempos para cá, mudei. O pessimismo deixou de ser uma estratégia para controlar o meu otimismo de aprendiz, a minha autoconfiança escondida, a minha utopia tímida. O futuro, de certa forma, já chegou, ou pelo menos se desenhou, e já sei que não é como eu esperava. O pesssimismo preventivo perdeu o efeito de me fazer feliz com pouco.
Agora assumi uma nova atitude. Eu realmente acredito no pior. Sou um pessimista autêntico. Realmente acredito que as coisas não vão funcionar. Nem no futuro mais longínqüo. Realmente acredito que a humanidade está condenada. E que nunca, nem no meu leito de morte, poderei sentir, e dizer: “Fiz tudo o que queria”.
O meu novo pessimismo, porém, não me deixou tão infeliz quanto seria de se imaginar. E isso é estranho. Sempre imaginei que o pessimismo autêntico era o caminho mais curto para a miséria existencial. Mas eu continuo gostando da vida, embora não veja nada de bom a caminho.
Por exemplo em relação ao planeta. Só os alienados completos não são pessimistas quanto a isso. Já está na cara que a espécie humana vai ser expulsa daqui. Como, num prédio, são expulsos os vizinhos que não contribuem para a manutenção, não pagam o condomínio, não reciclam, não estão nem aí para as infiltrações, ou para os próprios filhos barulhentos. E que peidam no elevador, claro.
Afinal, são os gases que a nossa espécie emite que estão abrindo um buraco na atmosfera, por onde vão passar raios solares ultra-fortes. Juntos, são estes gases e raios que irão criar as condições do nosso extermínio.
Vamos tentar fugir disso, claro, e então, antes de acontecer o inevitável, levaremos nossa superpopulação para longe do sol, provavelmente em algum tipo de cidade subterrânea. Teremos usinas para o tratamento do ar. Lá fora, na nossa nostalgia de vida natural, a pestilência acumulada e o efeito estufa reinarão.
É claro que, para muitas coisas, não vamos poder deixar de nos expor ao contra-ataque da natureza. E uma delas vai ser para conseguir água. Seremos gente demais no planeta, para água potável de menos.
Só que aí os descontroles ambientais finalmente chegarão ao seu auge. Terremotos, furacões, tsunamis, incêndios, vulcões… vai ser um longo cardápio. Um atrás do outro, esses cataclismas destruirão, em relativamente pouco tempo, as bases da civilização que os produziu.
Nossa utopia de explorar e reciclar infinitamente o meio natural terá cumprido sua parábola suicida. Todas as nossas usinas de dessalinização da água do mar e de tratamento do ar serão destruídas. Bem como as nossas cidades enterradas, onde muitos de nós hão de perecer. O Sol vai nos fritar, os gases envenenados vão nos defumar, e a falta de água nos deixará sequinhos e crocantes.
No desespero, a volta ao nomadismo será a única chance de sobrevivência. Vastos contigentes humanos migrarão para onde houver água, comida e ar puro. As divisões federativas e as fronteiras nacionais tentarão resistir, e por um tempo talvez até consigam, mas cairão. Depois de vários genocídios, cairão.
A humanidade ficará reduzida a hordas errantes. A lei da selva irá se impor. Bestializados, mas procriando sempre e dispostos a tudo, em massa vasculharemos o planeta atrás de seus derradeiros recursos. Como qualquer outra espécie de predador, viveremos todo o tempo numa expedição de caça, que só terminará com a nossa morte.
Prova disso foi o que aconteceu recentemente em Nova Orleans, e sobretudo o que aconteceu naquele estádio para onde levaram os desabrigados. Sem água, sem comida, sem cama, sem luz, derretendo num calor insuportável, grupos ferozes se formaram, e atacaram, escondidos pela multidão. No escuro, mulheres foram estupradas, mantimentos foram arrancados de velhos e crianças, houve brigas, houve roubos, houve mortes. E as águas tinham subido há pouco mais de 72 horas… Bastou três dias, e no país mais rico do mundo.
Nós, e os mamíferos em geral, estamos marcados para morrer. Talvez os pássaros também. Não sei. Com certeza a umidade fétida e o calor excessivo favorecerão outras espécies. Répteis e insetos e larvas e micróbios e microorganismos, e quem sabe a vida ocenânica, acharão ótimo que a espécie humana tenha sido tão autodestrutiva. O calor e a pestilência os favorecerão.
Os gases venenosos deixados pela humanidade, o nosso resíduo final, se dissiparão lentamente.
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É verdade que nós não somos autodestrutivos à toa. Até certo ponto, nossas causas são nobres: perpetuar a espécie, produzir e distribuir alimentos, produzir e distribuir riquezas, afirmar e difundir nossa maravilhosa cultura material etc. Para isso modernizamos nossas sociedades, inventamos tantas máquinas, desenvolvemos tantas tecnologias, atuando sobre todas as matérias deste mundo.
Talvez seja esse côté louvável que impede o meu pessimismo de me fazer tão infeliz. Mas, por outro lado, um bom pessimista sabe identificar a falha em qualquer projeto.
O erro trágico da espécie humana, aquele que será a causa essencial da sua extinção, é usar a ciência para evitar a morte, e a política para evitar as guerras. Multiplicar a espécie e prolongar a vida, os dois únicos mandamentos dignos do nome, os dois únicos que realmente obedecemos. E por causa deles vamos nos multiplicando, e na mesma medida em que o nosso engenho cria condições para atender às tais causas nobres, expandimos os problemas, botando mais e mais gente no mundo.
O paradoxo é o seguinte: para produzir mais riquezas e distribuí-las a mais gente, industrializamos mais países, intensificamos a exploração de seus recursos naturais, e assim vamos, pouco a pouco, com a melhor das intenções, destruindo o planeta.
E não há como ser diferente. Industrializar é a única maneira que conhecemos de propiciar saúde, educação, casa e comida a um povo.
Agora que China e Índia, dois dos países mais populosos, estão avistando a porta de entrada do primeiro mundo, todas as calamidades que meu pessimismo me sugere também estão chegando mais perto. O dia em que a maioria da gigantesca população chinesa tiver acesso a sua primeira geladeira, acabou-se. A Amazônia vai secar, as calotas polares vão derreter, a radição solar vai fazer a festa.
O Brasil, coitado, nem para o inferno irá com suas próprias pernas. Jamais nos desenvolveremos tanto, o que significa que não produziremos tanta poluição quanto as grandes potências ou as novas potências emergentes. Nossa grande contribuição para a desgraça humana vão ser as queimadas, tamanho o nosso primitivismo. Nossa grande contribuição vai ser cagar a Amazônia. Se fôssemos ter sorte, isso aconteceria por incompetência dos nossos melhores políticos. Mas não vamos ter. Elegeremos os piores, então tudo irá acabar por termos ficado atolados no populismo ridícula e tipicamente latino-americano de sempre.
Que caráter terá esse populismo, não faz muita diferença. Só muda a mosca. Ele cospe para cima na Argentina, veste verde-oliva na Venezuela e planta coca na Bolívia. No Brasil, depois de trocar o macacão de fábrica pela gravata de seda, ou vice-versa, eu aposto, ele será do tipo evangélico, messiânico, que, afinal, é a nossa melhor tradição.
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E no entanto, como eu já disse, continuo tão feliz quanto eu sempre fui. Nem mais nem menos. Por que o meu pessimismo, embora maior hoje, não me deixa mais infeliz do que eu era anos atrás? O que não mudou, depois de quase quarenta anos?
O amor entre homens e mulheres, talvez? Será que é isso que me consola? Mas isso também mudou, não mudou?
A liberdade que conquistamos, com muito sacrifício, em nosso imaginário amoroso, e em nossa prática, não nos criou a necessidade de amarmos com consciência, submetendo a avaliações periódicas o sentimento que nos liga ao “objeto” amado? Acabou essa história de “felizes para sempre”, não acabou? Até onde eu sei, nem como ideal isso existe mais. Transformamos o amor em um campo de conhecimento, uma ciência. De acordo com o resultado dessas avaliações periódicas, dessas ultrassonografias da emoção, podemos preferir refazer nossas vidas amorosas. Quem estaria, nos tempos atuais, disposto a abrir mão do seu autodeterminismo? Desenvolvemos técnicas para começar relações, e nos pós-graduamos em terminá-las. Quem não tirou o diploma, ficou para trás. A humanidade aprendeu a controlar a paixão. Homens e mulheres aprenderam a não se misturar excessivamente, a não se entregar ao amor pelo outro, a não comprometer partes inteiras de suas vidas num arriscadíssimo projeto comum. Como conseguimos? Fácil: pouco dinheiro, pouco espaço, e sexo, muuuuiiiito sexo.
Eu também poderia dizer que o segredo desta minha felicidade incongruente, quase pecaminosa, está no amor entre pais e filhos. Talvez o processo de dominação sobre este sentimento ainda não esteja completo.
Mas o bom pessimismo vê à frente, sempre. E o individualismo vai se impor aqui também.
Por isso as crianças precisam crescer mais depressa hoje em dia. Elas devem perder seu universo infantil o quanto antes. Aos dois, vão para o colégio. Aos onze anos, são pré-adolescentes. Aos dezesseis, podem votar. Aos dezessete, têm de escolher uma profissão.
O amor dos pais, hoje, deve se manifestar por meio de uma superestimulação a seus filhos, e de uma aceleração utilitária da infância. Quando são pobres, as crianças trabalham; quando são ricas, fazem aulas extras. Até o corpo delas reflete este imperativo, diz a Organização Mundial de Saúde. As meninas estão menstruando cada vez mais cedo. O que é um fenômeno de conseqüências planetárias, se você for pensar!
A farra está por um fio. Esticaremos este processo de eliminação das diferenças etárias ao máximo, e arrebentaremos enfim nosso próprio processo biológico.
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Mas afinal, de onde vem esta minha estranha complacência com os males do mundo, que no entanto me aparecem tão nítidos? Por que um pedaço de mim resiste ao horror dos meus prognósticos?
Minha vida, se eu for pensar, não tem nada de tão especial que justifique. Amo uma mulher, adoro minha filha, trabalho por dinheiro, escrevo por prazer. Feito bilhões de pessoas. Driblo os juros no banco por necessidade, vou à praia na hora do desespero. Igual a todo mundo. Durmo, vou ao banheiro, como e bebo, do jeito que a natureza manda. Não sou rico, não sou famoso, não sou o gênio que sonhei. Não espero mais que a vida melhore muito além disso. Já sei que não vou realizar meus grandes sonhos.
Que felicidade é essa então? Essa felicidade essencial, que sinto por nenhum motivo aparente? De onde vem a vontade de prolongar a minha vida, a vontade de ter mais filhos?
Talvez, no limite, a felicidade essencial esteja num contato diário com o instinto de sobrevivência. Se isso for verdade, a espécie humana, com todos os seus determinismos autodestrutivos, é feliz. Ela vai acabar, mas vai acabar satisfeita, ou seja, se multiplicando e prolongando sua vida. Vai acabar, vai se destruir, mas cometendo os erros mais desculpáveis, os mais compreensíveis. Ela vai acabar por viver a inteiramente a sua natureza. A humanidade, em seu cotidiano, se realimenta das perspectivas mais sombrias, e se aferra às realidades mais degradantes. Essa é a felicidade essencial.
Não conheço nenhum outro motivo para convencer alguém de que a vida vale a pena. Talvez a dele não valha mesmo. Talvez nem a minha. Mas eu não largo o osso. Tenho filhos, e gostaria de ter outros. Para prolongar minha vida, sigo regras elementares de nutricionismo, acredito demais na medicina, e aposto tudo, tudo mesmo, na criogenia. Quando eu estiver condenado por alguma doença, que me congelem, para me reacordar quando a cura já existir. Foda-se que todo mundo que eu amo vai ter morrido. Eu quero viver.
A existência de homens e mulheres infelizes, neste nível, ou seja, dispostos a morrer, cansados de viver, é um desvio de comportamento da espécie. A infelicidade essencial não é natural. O dilema filosófico do suicídio, para mim, está resolvido. A resposta é não.
No dia que o ar apodrecer e a água acabar, eu quero estar lá. Quando retrocedermos ao nomadismo, engolindo as fronteiras como animais esfomeados, quero ser o melhor caçador do meu bando. Quando meu novo amor acabar, e eu tiver de começar tudo de novo, eu vou começar. Quando minha filha crescer e não precisar mais de mim para nada, eu vou continuar a amá-la queira ela ou não. Quando o colapso final chegar, quero ver com os meus próprios olhos. Quando fugirmos do Sol, quero aprender a esquecer.
Apesar do meu pessimismo, rio sempre que posso, choro sempre que preciso, e gosto das duas coisas igualmente. Muito obrigado.